A equipe da Cervejas Sazonais, que aluga espaços em fábricas para produção de cervejas artesanais
Cervejeiros artesanais passaram a adotar um esquema "cigano" de produção. Alguns passaram a alugar espaço em fábricas grandes para fazer com que suas criações se destaquem no disputado mercado de bebidas.
Um exemplo de produto que foi adaptado das panelinhas caseiras para as panelonas industriais é a Cafuza, criação da
cervejaria Serra de Três Pontas. A ideia para a produção surgiu quando Bruno Moreno de Brito, com lúpulo demais em casa, convidou o amigo Leonardo Satt (da cervejaria Prima Satt) para fazer uma cerveja.
Ao definirem o estilo a ser preparado, pensaram em uma Imperial India Pale Ale, mas Bruno lembrou de uma receita de Black IPA que havia esboçado há algum tempo. A ideia era fazer uma bebida escura, bastante encorpada e com alto teor alcoólico. A bebida teria também presença marcante dos lúpulos americanos, com características majoritariamente cítricas.
A cerveja chamou a atenção da crítica especializada, incluindo aí elogios de Greg Koch, fundador da
Stone Brewing, uma das principais cervejarias artesanais dos Estados Unidos - e a dupla acabou recebendo um convite para fabricação em larga escala.
O responsável pela adaptação da receita para produção industrial foi Victor Pereira Marinho, cervejeiro profissional, que convidou Bruno e Leonardo para transformar a paixão em negócio.
Produção caseira da cerveja Cafuza: o desafio é adaptar a receita para o esquema industrial
Modelo cigano
Para que o projeto pudesse ser viabilizado, eles convidaram Luciano Silva, sommelier de cervejas e também cervejeiro caseiro, para criarem a Cervejas Sazonais, composta marcas Serra de Três Pontas, Prima Satt e Noturna. O formato de negócio estava decidido: seria uma empresa cigana, que não tem sua própria fábrica, mas aluga o espaço ocioso de cervejarias já existentes, algo comum fora do país.
O sonho de ver a cerveja mudando de panela começava a se concretizar, mas ainda havia muito a ser feito. Ter uma cervejaria, ainda que itinerante, exige que seus responsáveis tenham diversas preocupações além da bebida, a começar pela questão burocrática de abertura de empresa e registros de marcas.
Em seguida, a etapa mais complicada é achar alguma fábrica que aceite alugar seu espaço de produção e depois adaptar uma receita de 20 litros para 2.000 litros, por exemplo. Nessa fase, eles encontraram apoio da
Invicta, de Ribeirão Preto, que, segundo Rodrigo Silveira, mestre-cervejeiro do lugar, tem o hábito de ceder seus tanques para produções que não são suas.
"Desde a fundação da nossa cervejaria, optamos por reservar até 30% de nossa capacidade para as terceirizadas, mas é óbvio que para entrar aqui não interessa apenas o capital, é preciso também ter uma filosofia parecida com a nossa", explica.
Depois de feita a bebida, ainda é necessário garantir que as garrafas e barris cheguem bem aos pontos de venda – um transporte mal feito pode prejudicar a cerveja. Daí, é trabalhar e torcer para que haja uma boa aceitação do público. "Não adianta a sua mãe ou namorada achar que sua cerveja é a melhor do mundo ou seus amigos tomarem toda a sua produção. Ela precisa ser realmente boa e atraente para o mercado", diz André Leme Cancegliero, sócio da
Cervejaria Urbana, uma das primeiras ciganas de São Paulo.
A Júpiter, em São Paulo, é uma das cervejarias que adotaram o esquema "cigano"
Um pouco antes da Urbana, uma outra cervejaria nômade paulistana já disponibilizava seus produtos aos cervejeiros desde julho do ano passado. A Júpiter surgiu da paixão de três irmãos pela bebida que resolveram transformar o hobby em negócio. "Nossa escola cervejeira favorita é a caseira, cheia de personalidade, muito criativa e obcecada por qualidade", diz David Michelsohn, que encabeça a empreitada.
A cervejaria apareceu no mercado com uma American Pale Ale que foi seguida de uma IPA e uma Witbier com tangerina. Sobre o atual momento cervejeiro na capital paulista, David conta que percebe uma mudança. "Tem uma coisa bem bacana acontecendo, parecido com o que já rolou em Curitiba, que são os cervejeiros caseiros aparecendo com suas criações". Ele aponta que isso é possível justamente por conta da produção terceirizada.
Comprovando as palavras de David, novas iniciativas têm surgido, como a própria Cervejas Sazonais, com marcas já bem conhecidas. A empresa funciona como uma cooperativa, onde um ajuda o outro a entrar no mercado. "Funcionamos como uma empresa só, mas, para o consumidor, procuramos deixar as marcas separadas, principalmente porque não queremos perder nossa origem caseira", explica Bruno.
Perdas e ganhos
A principal vantagem de se ter uma cervejaria cigana é que o investimento de capital para começar a empreitada é muito inferior ao de ter sua própria cervejaria (algo que não sai por menos de R$ 2 milhões), o que diminui os riscos do negócio.
Além disso, a burocracia também é contornada, pois é necessário apenas o registro da própria cerveja junto ao MAPA (Ministério do Agricultura, Pecuária e Abastecimento), providenciado pela própria fábrica contratada. E há ainda o ganho imaterial, como a constante troca de experiências entre cervejeiros diversos.
Por outro lado, o modelo cigano também traz consigo uma série de dificuldades, a começar pela batalha para se arrumar alguém que aceite ceder o seu espaço para a produção de terceiros. É difícil, por exemplo, que alguém tope produzir uma cerveja com longa maturação, que pode ocupar o fermentador e maturador por meses, diminuindo assim o giro de produção.
As parcerias também não costumam ser constantes, então é comum que uma cigana troque de parceiro de tempos em tempos, o que exige que as receitas – que já haviam passado pelo delicado processo de adaptação das panelas caseiras para as de uma fábrica - sejam readaptadas aos novos equipamentos.
A matéria-prima necessária é outro empecilho, pois fica mais escassa de acordo com a época do ano – principalmente na primavera e no verão -, o que costuma atingir a maioria das micro cervejarias. "Na temporada de pico falta garrafa de vidro, malte especial, lúpulos... a importação desses insumos é irregular, só chegam algumas vezes por ano. A solução é fazer um produto semelhante ao que se pensou inicialmente, experimentando e criando tudo outra vez", define Frederico Ming, arquiteto e cervejeiro da Capitu. "Cada lote é um lote, e isso, por outro lado, é o que há de mais bonito na cerveja artesanal", continua.
Novas ciganas surgindo
A história da Capitu surge em 2009, quando Fred estava passando um ano sabático na Alemanha. Limpando a neve de um vagão de trem adaptado para moradia, encontrou uma planta que não conhecia. Foi um cervejeiro caseiro alemão que contou que aquilo era lúpulo, um dos principais ingredientes da cerveja. Então, aprendeu todo o processo com o amigo e, ao voltar para o Brasil, convidou Marcelo Holl Cury, também arquiteto, para montar uma cervejaria caseira.
Nascia assim a Capitu – que leva os olhos da personagem de Machado de Assis em seus rótulos. "Temos o compromisso de produzir cervejas de verdade, com experimentação de novas receitas e processos", diz Fred.
A previsão é que a Capitu chegue ao mercado entre o final do inverno e o começo da primavera. Seus primeiros rótulos deverão ser uma oatmeal stout, que já foi produzida em uma leva de 500 litros pela
Cervejaria Nacional, após a receita ser campeã do concurso estadual promovido pela ACervA Paulista (Associação de Cervejeiros Caseiros do Estado), e uma amber ale.
A tendência é que, com o aumento do número de cervejeiros caseiros e o crescimento do mercado como um todo, esse formato de negócio cresça nos próximos anos. Contudo, o mestre-cervejeiro da Invicta faz um alerta: "Acredito que, com o passar do tempo, algumas cervejarias ciganas terão suas próprias fábricas, mas há aquelas que deverão ficar pelo caminho, devido a toda complexidade do negócio e sua baixa rentabilidade".
Fonte: http://comidasebebidas.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/07/produtores-viram-ciganos-para-realizar-sonho-de-montar-cervejaria.htm