Bier Keller funciona em um lugar discreto numa área residencial de Porto Alegre.
Objeto de culto entre os cervejeiros, um bar de Porto Alegre encanta pela simplicidade, beleza e seleção da clientela.
Entre os apreciadores de cerveja, é comum alguém se gabar de ter consumido alguma marca de terras longínquas, provado uma receita com ingredientes inusitados ou experimentado uma edição limitada, da qual foram produzidas pouquíssimas garrafas. Há um feito, porém, que raramente é batido nessas triviais competições de mesa de bar: frequentar o Bier Keller.
Funcionando em um casarão num bairro residencial de Porto Alegre, o Bier Keller subverteu o conceito tradicional de um bar. Na verdade, trata-se de um anti-bar. Não há letreiros luminosos na fachada, não tem garçom, tampouco serviço de cozinha. Aliás, as portas nunca estão abertas à freguesia. Isso mesmo. O Bier Keller funciona de porta fechada. Para entrar, é preciso tocar a campainha e torcer para os donos simpatizarem com a sua cara. Se, após a rápida e severa espreitada do seu Vitório ou da dona Gerti, a porta se abrir, comemore. Você está prestes a ingressar em um local de culto.
Mas, afinal, o que há de tão especial nesse bar? Entrar no Bier Keller é como passar por um túnel do tempo. A decoração remete aos velhos armazéns. Sobre o balcão de madeira maciça, de cinco metros de comprimento, há uma caixa-registradora a manivela, relíquia do primeiro banco comercial fundado no Rio Grande do Sul. Ao lado, repousa uma torneira de chopp resgatada da Confeitaria Rocco, tradicional ponto de encontro da aristocracia porto-alegrense no início do século passado. Por onde se desvie o olhar, há relíquias do passado. Da jukebox estacionada no canto às placas publicitárias nas paredes, dos bancos feitos com barris de madeira à mesa enorme do salão principal, antes usada para carnear porcos. E se o banheiro das mulheres é aquecido por um fogão à lenha, o dos homens tem um pé de lúpulo esgueirando-se pelas paredes.
Tudo ali foi pensado com extremo cuidado por Vitório Luiz Levandovski, dono do Bier Keller. “Levei nove meses só para terminar o salão principal. Algumas peças eu levei anos para conseguir que me vendessem, como a jukebox - conta Vitório, que aos 53 anos é uma lenda da cena cervejeira no país.
Ex-gerente comercial, Vitório trabalhou na Brahma e na Antártica antes de passar para trás do balcão. A mudança se deu nos anos 1990, quando ele anteviu a revolução que estava por vir no mercado cervejeiro. As cervejas artesanais estavam começando a surgir no Brasil, seguindo uma tendência que se consolidava no Exterior. Vitório pediu demissão e saiu a viajar pelo país, visitando cervejarias, bares, distribuidores e importadoras. Decidiu abrir o próprio estabelecimento.
“Eu não queria abrir um bar comum. Queria um bar que as mulheres pudessem frequentar com as amigas, que fosse bonito e aconchegante, com banheiros limpos, copos adequados, cervejas diferentes e que não fossem caras”, relembra.
Nasceu assim o Água de Beber, no centro histórico da capital gaúcha. À época, Vitório trabalhava com 70 rótulos e a demanda dos clientes por novas cervejas só aumentava. Para fomentar o mercado, ele se tornou um dos maiores agitadores da nova onda cervejeira. Ajudou a criar as primeiras associações de cervejeiros caseiros, os primeiros festivais, incentivou as pequenas fábricas a criarem novas receitas e investirem em outros estilos de cerveja, sugeriu marcas aos importadores e estimulou a abertura de lojas de equipamentos e insumos.
Nessas andanças, Vitório criou o conceito do Bier Keller. Para além da decoração repleta de antiguidades, o diferencial que ele buscava era no atendimento. Daí a porta fechada e a ausência de garçons. No Bier Keller, é o próprio cliente que se serve. Ele abre o freezer, escolhe entre os cerca de 250 rótulos, apanha os copos no armário e abre a garrafa com um dos abridores espalhados pela casa. Para comer, há um buffet de acepipes, salsichas bock, pão de cerveja e um prato quente, que pode ser um pernil ou pato. Se preferir, o cliente pode mandar pedir uma pizza. É só pagar na porta e comer no bar que o Vitório não se importa. Só fregueses mais assíduos, considerados “de casa”, podem usar a cozinha. É só levar os ingredientes e preparar o jantar.
Durante algum tempo, essa clientela fixa formou um clube no Bier Keller. Eles pagavam mensalidade e tinham direito a algumas benesses, como participar de eventos, degustações e... a suprema primazia: não precisavam bater à porta. Vitório instalou uma fechadura biométrica. Era só colocar o polegar no leitor ótico que a porta se abria. “Cheguei a ter 200 clientes cadastrados. Só com eles eu pagava todas as despesas do bar”, conta.
É essa freguesia que tem acesso a dois ambientes especiais do Bier Keller, em geral restrito ao público comum. Descendo uma escadaria no pátio, chega-se a uma espécie de porão (em alemão, Bier Keller significa porão da cerveja), com as paredes de tijolos à vista e garrafas e canecos no teto. Ao lado, fica uma câmara fria com o estoque da loja. E ao se empurrar uma das paredes da sala, abre-se uma passagem secreta que dá lugar a outro bar, com balcão e mesas dispostas à espera de quem necessita de um espaço mais privado.
“Fiz um bar que resgata o companheirismo. Aqui não passa jogo de futebol nem tem música ao vivo. É para as pessoas conversarem enquanto apreciam uma boa cerveja com um aperitivo que ressalte o sabor da bebida. Não tem comanda, nem garçom te empurrando mais uma garrafa. É tudo na confiança. Essa é a palavra chave do bar”, resume Vitório.
Fonte: G1