Ouvimos três apreciadores de cervejas especiais, que nos contam quais as experiências que buscam em suas jornadas atrás de sabores inigualáveis e o que já encontraram por aí
“No caminho é que se vê a praia melhor pra ficar
Tenho a hora certa pra beber
Uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”
Chico Science (1966-1997) não explicou, na letra de “A Praieira”, música de Da Lama ao Caos, primeiro álbum com a Nação Zumbi, se a cerveja que lhe abria a mente para reflexões mais profundas era uma tradicional ou especial. É pouco provável que fosse uma bela artesanal, já que a música está no disco lançado pela banda em 1994, quando as cervejas especiais ainda não eram tão abundantes no Brasil quanto hoje. Mas o fato é que a bebida, na hora certa para ser degustada – antes do almoço – lhe fazia um bem danado. É a tal da experiência.
“Sentir o aroma, analisar a cor, saber onde é fabricada, até mesmo a proposta de nome e rótulo compõem toda a experiência de tomar uma cerveja artesanal”. É como Rodrigo Capuski, fotógrafo de 37 anos, define o prazer de apreciar uma cerveja especial. Ele não diz se a melhor hora é antes de uma das refeições do dia, mas do jeito que descreve o ato de saborear a bebida, deixa claro que, assim como era para Chico – ou para o personagem da música – para ele, se trata de um momento único.
Uma circulada por bares, restaurantes e churrascos leva qualquer um a entender empiricamente que a cerveja é a bebida preferida no país. Dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) revelam que o número de cervejarias cresceu acima dos 30% nos últimos dois anos. São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Santa Catarina são os destaques nacionais do setor. Até fevereiro de 2020, eram 1.171 cervejarias cadastradas na pasta, em plena atividade, número acima dos 889 contabilizados em 2018. As regiões sudeste e sul do país somam 85% da produção de cerveja em território nacional.
Consumidor exigente
O impulso nesse mercado veio também das cervejas artesanais. Segundo análise da myTapp, startup brasileira que atua no ramo cervejeiro com soluções tecnológicas, o boom das artesanais, a partir de 2010, está relacionado à exigência maior dos consumidores quanto à qualidade e variedade da bebida, rótulos diferentes e experiências únicas de consumo.
Exigência essa que atravessa gerações. Se inicialmente a impressão é a de que são os mais jovens que consomem as artesanais, o rol de apreciadores não encontra limites de idade ou de gênero.
“Artesanal não tem a ver com a idade, mas com quem aprecia qualidade”, ressalta José Nicolau Kutianski, 62 anos, cirurgião dentista. “Qualidade nos componentes que dão aromas e sensações gustativas inigualáveis”, acrescenta.
Nicolau não tem de memória quando foi sua primeira experiência com as especiais. Mas não bobeia ao falar da sua marca preferida: “é a Maniacs”. Uma das cervejarias artesanais mais populares do Brasil, a Maniacs Brewing Co. nasceu em Curitiba em 2016 e se define como “feita por loucos por cerveja para loucos por cerveja”. Atuam nesse segmento desde 2005 ao participar do nascimento e da consolidação de diversas marcas de cervejas internacionais e nacionais no Brasil.
Já Rodrigo lembra que foi com a Murphy’s Irish Stout que o mundo das artesanais se abriu para ele. “É bacana compartilhar com os amigos quando você descobre uma cerveja de qualidade. E as opções são infinitas se contar com tudo o que há disponível no Brasil e no mundo”, comemora.
Michele Garbosa entrou nesse universo em 2015. A analista de mídia de 31 anos embarcou numa aventura degustativa quando começou a procurar por cervejas diferentes nas gôndolas de supermercados tradicionais. Pouco tempo depois, enquanto passeava pelo bairro do Bacacheri, em Curitiba, se viu diante de um bar que vendia cervejas artesanais no tap. Decidiu entrar para experimentar e se tornou apreciadora. “Resumidamente, sabor!”, responde enfática ao ser perguntada por que recorre sempre às artesanais. “A experiência na hora da degustação, tentar identificar os sabores, é divertido”.
O caminho da degustação
Esse processo de apreciação e degustação se assemelham aos vivenciados pelos amantes do vinho. Mesmo que Nicolau, Michele e Rodrigo não sejam especialistas em cerveja, daqueles que, de olhos vendados, conseguem apontar qual a marca e quais as características de cada uma experimentada. “No começo eu não conseguia distinguir muito bem as diferenças”, assume Michele. “Com o tempo, fui aprendendo a identificar alguns dos sabores presentes em cada cerveja, mas ainda continuo no processo de aprendizagem”, diz.
“Apesar da minha percepção ser bastante limitada para isso, não tenho habilidade de diferenciar notas sutis nas bebidas, sou um amante do lúpulo. Então costumo diferenciar melhor as variações dele entre as cervejas que costumo tomar”, aponta Rodrigo.
Universo masculino? Nem tanto
Cerveja normalmente é vista como uma bebida para homens. Até bem pouco tempo atrás, as campanhas publicitárias pareciam falar exclusivamente com o público masculino. Algumas ainda mantém essa abordagem, indo na contramão da história.
“De fato, o mundo cervejeiro acaba sendo ainda bem masculino, mas eu conheço algumas mulheres que também apreciam as cervejas artesanais”, conta Michele. “Costumamos degustar juntas alguns rótulos e sempre conversamos sobre sabores, textura”. Foi em uma dessas degustações que nasceu a Conframina, grupo de mulheres que deseja reunir ainda mais apreciadoras das especiais para, juntas, compartilharem sabores, experiência e conhecimento sobre a bebida.
Ainda que perceba alguns rastros de machismo nesse meio, Michele celebra o fato de já encontrar mudanças. Em suas experiências atrás do sabor perfeito, encontrou gente disposta a ajudá-la com explicações sobre cada tipo diferente de cerveja. “Hoje, tomar cerveja artesanal se tornou um hobby, e uso o aplicativo Untappd para fazer check in nas cervejas e tirar fotos dos rótulos”, afirma.
“Dizem que o melhor da conquista é o caminho que leva a ela. Concordo”, sinaliza Iron Mendes, CEO da Maniacs. “Poucas coisas são mais saborosas do que a busca por sabores diferentes e experiências inéditas na degustação de cervejas especiais. É por isso também, por essa riqueza de experiências e possibilidades, que o segmento das cervejas especiais é um mercado em ascensão”, acrescenta.
O mercado é, de fato, crescente e promissor. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o número de cervejarias artesanais no país aumentou mais de 91% entre 2015 e 2017.
Pelos números no Brasil, o mercado deve, pouco a pouco, adquirir um formato semelhante ao dos EUA, o mais forte para cervejas artesanais no mundo. Em 2019, a categoria representou 13,6% em volume e 25,2% em valor do total de cervejas comercializadas, uma receita de U$ 29,3 bilhões (R$ 169 bi), de acordo com dados da Brewers Association. Por lá, o off trade representa em torno de 65% do total do mercado, movimentando U$ 19 bilhões (R$ 110 bi) e mais de dois bilhões de litros de cervejas artesanais.
Fonte: v3com
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